- Quantos canais tem sua televisão?
- todos da NET menos os de filme, sai muito caro.
- Quantos tu assiste?
- uns 13, sei lá.
- Tu sempre usa o controle para mudar de canal?
- mas é claro, que pergunta idiota. quem hoje em dia levanta para mudar o canal? em que mundo vives? por que tantas perguntas? se continuares, vou te dar um soco.
Ah, tamanha ira de Fabio, quando Lucíola lhe falou no controle.
"Pode parecer uma pergunta idiota, mas sei lá, minha falecida vó nunca se acertou com o controle remoto, achava que se usasse-o poderia tonar a TV inoperante, desse modo, ela pensava que se clicasse no botão de volume do controle remoto só poderia aumentar o volume pelo controle, até o momento que a TV seria desligada da tomada e religada a fim de que voltasse ao normal. Sei também que o Fabio não tem a idade que minha vó faleceu, ele é meu contemporâneo, não é a geração Y mas consegue lidar bem com tecnologias, mas que mal há em falar em controles? Talvez esse fosse o fio da meada para uma conversa, uma aproximação. Mas não! Esse controle acionou uma mola nele, que sei lá onde bateu, mas a reação foi... vou te dar um soco. Ah, desde que meu irmão foi morar sozinho, já não entendo-o mais. Enfim, vou tentando entende-lo aos poucos".
"ah, o que Lucíola pensa que é, vem aqui em casa e fica indagando tudo. sempre umas perguntas idiotas e óbvias, se ela ainda fosse pequena e eu também, juro que teria pulado no pescoço dela, dado uns socos no seu estômago até ela chorar, só pararia quando ela gritasse pai para ele vir me tirar de cima dela".
A noite chegou. Lucíola foi embora. Fabio deitou-se em sua cama, a cama era de casal, mas companhia não havia por ali, pegou seus dois controles, um da NET e o outro da TV. Ligou ambos e foi trocando os canais. Aos poucos ia pensando: não gostei, pula. esse assunto é chato, pula. esse programa é muito emotivo, pula. esse é de mulherzinha, pula. pulou tanto, fugiu tanto, tal qual fez com Lucíola. na TV ele não precisava ameaçar com soco. qualquer insatisfação fazia-o clicar no botão. socos imaginários em qualquer manifestação humana.
Como era Fabio? Nem ele sabia. Pesava mais de 180 quilos, no troca troca dos canais, ele comia um pouco para passar o tédio. Foi tanto tempo fugindo de tudo, que uma manta de gordura o separava do mundo, o separava até mesmo da televisão. E para ele bastava estar com o controle na mão e ir mudando. Com TV ou sem TV ele é que mandava no controle. Mas ao certo não sabia quem era, nunca tinha nem parado para pensar. Adoçava a vida com muito açúcar, dos mais diversos tipos, confeitos, sorvetes, bolos, etc. Balanceava o doce com um salgado, afinal como adoçar as amarguras se já está se sentindo doce ao extremo?
Fabio nunca parava, nunca olhava seus olhos no espelho, não compreendia a si. Não compreendia e nem tentava. Apenas comia.
Mas até os psiquismos mais inconscientes sentem dor. E na calada da noite, ele chorava. Chorava igual a um gatinho que quer deitar com seu dono em uma noite fria. Ele miava, porque chorar mesmo ainda não tinha aprendido.
Seu controle e seu miado. A única partícula de vida que sempre lhe dizia: você está aqui e Não há escapatória. Assim ele miava mais um pouco. Sentia seu estômago inchado de tanta comida e não sabia o que fazer. Miava, Miava, Miava. Ultimamente Miava em letra maiúscula.